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Cultura e Superego Selvagem

segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Cultura e Superego Selvagem


de Paulo Costa Lima.

O fervor místico de ex-viciados me espanta e enternece.
Há claramente uma formação delirante, cuja couraça impede qualquer exercício de razão.
A conversa roda em círculos, a mitologia se oferece como âncora de salvação: contra o quê?
Lutar contra o sofrimento é uma coisa, contra a memória do prazer desmedido, bem pior.
Há aí nesse enlace entre prazer e sofrer uma equivalência perversa - a diminuição na taxa de prazer é sofrimento, a diminuição na taxa de sofrimento, prazer.
A psicanálise desenvolveu uma síntese, e aprendeu a chamar esse iô-iô de gozo. Quem sofre também goza, confirmam fobia, hipocondria, obsessão, histeria e pânico.
Mas oh cronista desassuntado: que assuntos são esses? Pra onde vai a cultura?
Pois é, pra onde vai a cultura, que a vejo aproximando-se mais e mais da experiência de adição/vício; que a vejo mais e mais como recepção um tanto frenética dos novos produtos e formatos...
Se isso é uma tendência como estaremos em duas décadas?
Que buraco negro se instala nos milhões de cérebros ensinados a exigir códigos imediatos de empatia e felicidade instantânea - rejeitando com frieza qualquer proposta de adiamento do prazer de reconhecimento e júbilo?
Os sujeitos de hoje tendem a gozar sozinhos na onda das bulimias, das anorexias, das toxicomanias. E esse é um fato de divã.
Como poderia ser diferente na relação com a arte, com a música, por exemplo?
Como legitimar 'causas' e 'princípios' no campo da arte e da cultura, se essas coisas implicam necessariamente um enlace com o campo do Outro, a construção de uma historicidade coletiva (haveria outra?)?
Será por isso que todo o ambiente de reflexão crítica e de intervenção crítica, duramente conquistado no Século XX, parece simplesmente condenado à irrelevância comunicativa nos dias de hoje - sendo a irrelevância comunicativa a pior irrelevância que existe?
O espaço anteriormente reservado à 'causa' vai sendo progressivamente substituído pela estratégia de visibilidade, o 'gancho', aquele algo mais capaz de conquistar público e mercado.
A substância permanece. Algumas canções da jovem guarda já soam como clássicos.
Hoje podemos apreciar o conteúdo profético da anti-obra de Andy Warhol. Sua obra anuncia tudo o que estamos falando. E vai além: lá a seu modo tanto materializa como denuncia o que está acontecendo. Celebra e desnuda ao mesmo tempo.
Adeus ao superego difundido pelo freudismo, aquele que reprime e censura. Quais as conseqüências de produzir arte/cultura sem essa baliza, na era do gozo ilimitado?
Vivemos na época do superego selvagem, uma instância descoberta/inventada como origem da ordem inexorável que permeia os humanos: Goza!
A ordem para gozar - descobrimos com Lacan (que mostra ter lido nas entrelinhas de Freud) -, é a ordem mais fundamental. A ordem pra gozar é a ordem para ser, e existir.
Lá no sertão, já dizia o forró: Antonio Guedes, Zeca Guedes, Mané Guedes / O diabo desses Guedes que não param de Guedar... O poeta transformou o nome em verbo; todos nós passamos a vida Guedando, a nosso modo.
Mas quando o gozo é ilimitado, e quando banimos para longe a mediação da causa, ficamos diretamente em contato com essa ordem primeira de um outro onipotente, tal como no fervor místico dos ex-viciados, onde o que sobra é do campo do pavor dessa proximidade, do pavor de gozar tudo e de morrer.
Será esse o futuro/presente da cultura?
Últimos Consolos:
Examino com admiração a fotografia de uma flauta feita de osso de ganso, datada de 36.000 anos antes de Cristo. A música sobreviveu a tudo. Certamente continuará assim.
Tudo isso é irrelevante num planeta que aquece a olhos vistos.

Paulo Costa Lima é compositor, professor da Escola de Música da UFBA. www.myspace.com/paulocostalima - http://www.paulolima.ufba.br/ Fale com Paulo Costa Lima: paulocostalima@terra.com.br


O texto de Paulo Costa Lima traduz com riqueza poética um dos problemas mais frequentes da atualidade e que acabam sendo atendidos diariamente por psiquiatras, psicanalistas, psicólogos, padres, conselheiros, etc. Me parece que as pessoas já não conseguem mais esperar para ter prazer. Precisam saciar imediatamente suas necessidades e a qualquer custo. Mas por quê? Talvez pelo fato das pessoas, hoje em dia, "comprarem" felicidade. Diariamente somos bombardeados por publicidade que vendem a idéia que "você é feliz se tiver tal camisa, ou se comprar tal celular, ou se comprar tal carro, ou se comer aquela comida". Num mudo extremamente competitivo onde as relações humanas se enfraquecem cada vez mais justamente devido a necessidade de "estar sempre a frente e garantir meu lugar ao sol", acabam faltando espaço ou tempo para almoçar com a família, para passear com seu filho, para dormir até mais tarde, para "não fazer nada". Muitos adultos de hoje foram criados em ambientes assim e o que se percebe é que alguns simplesmente não conseguem "sentir" felicidade. Talvez pelo fato de que durante a vida toda foram condicionados a "ter" felicidade. Aqui começamos a discutir dois conceitos importantes: ser feliz e ter felicidade. Muitas pessoas não conseguem viver a experiência de "ser feliz". É possível que essas pessoas possam se tornar vítimas fáceis do consumismo desenfreado. Na verdade buscam enlouquecidamente um momento de plenitude, um momento de felicidade, nem que isso dure apenas alguns instantes. Passado o efeito eufórico do prazer imediato causado pelo "ter" o indivídduo percebe que continua não se sentindo pleno, não se sentindo feliz. Um terreno fértil para adições e compulsões.

Daniel Bittencourt de Medeiros - médico psiquiatra em Jaraguá do Sul.
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2 comentários

  1. Olá Dr. Daniel!

    Gostei muito do seu Blog! Fará parte das minhas horas de lazer...

    Abraço, Dayane

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  2. A busca pelo prazer norteia toda a humanidade pelo passar da história. O que fica questionável é qual prazer e a que custo. Realmente o texto de P.C.Lima nos remete a uma introspecção no que tange a fonte de prazer. O que inicialmente permite uma experiência de gozo e satisfação, por ora parece não mais evocar as mesmas sensações, como se esta busca inconstante e infindável jamais se completará. Mas de quê prazer exatamente, o texto quer apontar? De um prazer egoísta que não se satisfaz e não mede esforços para alcançá-lo (que por si só também tem suas justificativas ou motivações); ou de uma busca pela falta de prazer na vida, preenchimento de um vazio, um sentido, um motivo para viver. O que difere o remédio da droga é a dosagem; nesta perspectiva o que difere o prazer do desprazer, acaso não seria também a dosagem? O excesso ou a falta de prazer podem ser tão maléficos quanto uma dosagem de medicamentos ministrada erroneamente. Sim, perceber o entorno sem deixar-se influenciar pela máquina imediatista do nosso tempo é essencial, mas como perceber se não se é percebido? É possível não compreender a linguagem alheia, e ficar na espera de um prazer que não se completa? Não é de se espantar com o crescente número de adicção, ela oferece uma forma mais palpável de prazer, mesmo não sendo a mais saudável, pelo menos, momentaneamente ela supre uma falta. Por isto não me sinto digna de julgar aqueles que enveredam por caminhos tortuosos da drogadição. São tão vítimas do desprazer como qualquer um, mas pagam um preço muito caro por isto. Quando na realidade o prazer não deveria ter preço, nem ser pago. Questiono-me se esta ânsia desenfreada e imediatista de prazer não é resultante da falta do “ser” feliz. Deveria brotar da essência do ser humano como fonte de sobrevivência “dar” e “receber” prazer, de tal forma que bastariam ambientes solidificados com amor suficientemente fortes para suprir a necessidade natural de receber e perceber o prazer. Acaso não seria esta falta de receber amor que causa a distorção entre “ter felicidade” e “ser feliz”. No vazio do “ser” feliz, procura-se preencher com o “ter” felicidade, mesmo que por pequenos instantes. Abordando de forma preventiva as famílias, sob este enfoque, creio que seria possível reverter este quadro, pelo menos reduzindo a magnitude das adicções futuras. (Mariane Manske Oechsler - marianemo@ibest.com.br)

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